DE RIZOMA, IMAGINÁRIO E LINDA HUTCHEON NA INTERTEXTUALIDADE DE “UM DIA EM JERUSALÉM”, DE EMÍDIO SILVA FALCÃO BRASILEIRO
Gismair Martins Teixeira – Doutor (SEDUCE-GO)
e-mail: gismairteixeira@gmail.com
RESUMO
Gilles Deleuze e Félix Guattari, Gilbert Durand, Linda Hutcheon e
Julia Kristeva são autores que têm contribuído de forma significativa no
universo das pesquisas literárias nas últimas décadas com seus aportes
teóricos. Formuladores de conceitos como rizoma, imaginário, parodização
e intertextualidade, respectivamente, suas formulações fomentam o
diálogo entre obras artísticas e literárias de contextos e procedências
diversas. Neste trabalho, buscamos estabelecer uma correspondência
entre a obra do escritor baiano radicado em Goiás, Emídio Silva Falcão
Brasileiro, intitulada Um dia em Jerusalém, publicada em primeira edição
no ano de 1988, e a obra O profeta, do escritor libanês, Gibran Khalil
Gibran. Buscaremos estabelecer o locus discursivo de onde fala o escritor
brasileiro, bem como a relação de sua produção em recorte para este
estudo com o clássico trabalho gibraniano da literatura sapiencial. Para
tanto, buscaremos assentar as bases relacionais desta proposta no universo
epistêmico dos teórios mencionados de início.
Palavras-chave: Rizoma; Imaginário; Emídio-Brasileiro.
INTRODUÇÃO
Neste estudo apresentaremos uma breve abordagem comparativa
entre as obras referenciadas no resumo, assumindo como elementos
epistêmicos norteadores os conceitos nele mencionados.
Faremos, de início, um recorte mais incisivo na formulação
deleuzeguatarriana acerca do rizoma, reservando aos demais conceitos
referências mais breves e contextualizadas no dialogismo entre as
produções em análise. Buscaremos desenvolver uma abordagem que
ponha em evidência as homologias presentes entre os conceitos utilizados
para correlacionar ambos os trabalhos literários do gênero sapiencial.
Rizoma, episteme literária e comparatismo
No primeiro dos cinco volumes brasileiros de Mil platôs: capitalismo e
esquizofrenia, Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995, p. 14) conceituam e
definem o rizoma como metáfora de cunho epistemológico elaborada a
partir do jogo relacional extraído à natureza. A batata, a grama, a erva
daninha são rizomas (DELEUZE, GUATTARI, 1995, p. 14): “Até animais o são,
sob sua forma matilha; ratos são rizomas.”
A visualização de um gramado permite uma apreensão imagética
relativa do conceito epistêmico de rizoma. Cada tufo de grama se
conecta a outro por radículas subterrâneas. De maneira semelhante, nas
belíssimas vitórias-régias. Apesar da conexão entre as partes, cada uma
delas possui a sua independência. Conforme os autores: “[o rizoma] põe
em jogo regimes de signos muito diferentes […] (DELEUZE, GUATTARI, 1995,
p.31).”
Deleuze e Guattari (1995) apresentam, ainda, seis princípios
componentes do conceito de rizoma, funcionando este como um
substituto à metáfora arborescente de que está impregnada a cultura
ocidental, conforme a arborescência linguística chomskyana (1995, p. 14).
O rizoma, no entanto, representaria a momentânea territorialização de um
dado objeto e sua multiplicidade interacional em constante fluxo no vir-aser. É um sistema de que se extrai “o único da multiplicidade a ser
constituída (DELEUZE, GUATTARI, 1995, p. 13).”
Neste contexto, pois, a autonomia sígnica de qualquer objeto, bem
como a sua correlação a outras matérias, poderá caracterizá-lo como um
rizoma no contexto mais amplo que os teóricos franceses desenvolvem em
seu trabalho. Funcionalmente, neste estudo, cada uma das duas peças
literárias aqui apresentadas será assumida como um rizoma independente
que, todavia, conecta-se a sua congênere por epistemes literárias e
culturais como a intertextualidade, o parodismo hutcheniano e o
imaginário durandiano.
O profeta é uma das peças literárias mais conhecidas do escritor
libanês Gibran Khalil Gibran. A estrutura desse livro sapiencial é marcada
pelo diálogo que se estabelece a partir de lições que são ministradas por
Al-Mustafa, o sábio, na imaginária cidade de Orphalese. Ele aguarda a
chegada de um navio que o levará a sua terra, pois ali se encontrava,
apesar dos 12 anos de permanência, de passagem.
Numa abordagem exegética, essa informação pode ser pensada
como uma alegoria para a vida. O conteúdo simbólico e de sabedoria de O profeta sugere que Orphalese bem pode representar a existência
humana e o mundo que a enforma, numa perspectiva lato sensu.
Simbolicamente, às portas da morte, ou na iminência da volta para o lar
espiritual, Al-Mustafa apresenta a seus visitantes, que o cercam na
despedida, palavras sábias, carregadas de uma poesia mística singular.
São 28 discursos sobre temas fundamentais da existência. O profeta
é interrogado por interlocutores diversos sobre temáticas como o amor, o
matrimônio, os filhos, a dádiva, o comer e o beber, o trabalho, dentre
outros. Sobre a morte, penúltimo tema a ser desenvolvido, Al-Mustafa dirá,
em resposta a Almitra:
Quereis conhecer o segredo da morte.
Mas como podereis descobri-lo se não o procurardes no
coração da vida?
A coruja, cujos olhos, feitos para a noite, são velados ao
dia, não pode descortinar o mistério da luz.
Se quereis realmente contemplar o espírito da morte, abri
amplamente as portas de vosso coração ao como da
vida.
Pois a vida e a morte são uma e a mesma coisa, como o
rio e o mar são uma e a mesma coisa.
Na profundeza de vossas esperanças e aspirações dorme
vosso silencioso conhecimento do além […] (GIBRAN,
1980, p.54; grifo nosso).
A palavra em destaque pode servir de referencial para remeter o
leitor a um rizoma específico, aqui entendido como um recorte cultural
particular: o espiritismo kardequiano, sistema de religiosidade francês do
século XIX que se estabeleceu no Brasil de forma peculiar, rizomática. Em
nosso país, a palavra destacada evoca o imaginário espírita de forma
unívoca.
Em As estruturas antropológicas do imaginário, o pesquisador
francês, Gilbert Durand (2012, p. 18), define o imaginário como sendo “o
conjunto das relações de imagens que constituem o capital pensado do
homo-sapiens”. Infere-se, pois, dessas palavras, que cada rizoma particular
pode e deve ter o seu imaginário, invariavelmente. Além-túmulo, vida após
a morte, imortalidade da alma, reencarnação constituem conjuntos
imagéticos do capital espiritista que surge no cenário cultural humano em 18 de abril de 1857, com a publicação de O livro dos espíritos por Allan
Kardec (1995), pseudônimo de Hippolyte Léon Denizard Rivail.
Na despedida de Al-Mustafa, Almitra, a vidente, verbaliza o
sentimento de todos os presentes à partida do profeta, que apresenta em
suas palavras elementos novos para a leitura alegórica de que realmente a
partida dizia respeito à morte. Neste momento crucial, o sábio tece
considerações remissivas ao imaginário espírita, em poesia mística de
peregrina beleza que estrutura em metáforas tomadas de empréstimo à
natureza.
Conclui Al-Mustafa sua despedida com estas palavras:
Estou pronto.
O rio já atingiu o mar, e mais uma vez a grande mãe
aperta seu filho contra o peito.
[…] Mais um curto instante, e minha nostalgia começará
a recolher argila e espuma para um novo corpo.
Mais um curto instante, mais um descanso rápido sobre o
vento, e outra mulher me conceberá (GIBRAN, 1980, p.
59).
O autor sugere de forma nítida neste tópico o princípio da
palingênese grega, ou a moderna reencarnação. Aqui, porém, é possível
vislumbrar uma possível construção alegórica com base no princípio
reencarnacionista. Al-Mustafa pode reencarnar alegoricamente segundo
os modernos postulados em torno da paródia, conforme apresentado por
Linda Hutcheon (1985) em Uma teoria da paródia: ensinamentos das formas
de arte no século XX, espaço em que afirma que a paródia representa
etimologicamente não só a possibilidade do burlesco, do irônico, mas a
possibilidade do diálogo construtivo entre os textos (HUTCHEON, 1985, p.
1985).
Al-Mustafa ressurge pelas vias da homenagem parodística à
sublimidade poética e mística de que se fez mensageiro em O profeta.
Agora, porém, concebido em terras goianas. No ano de 1988 veio a
público a obra Um dia em Jerusalém, de autoria de Emídio Silva Falcão
Brasileiro. Tanto no aspecto formal, quanto no aspecto estético, a
produção de Emídio Brasileiro dialoga com o texto-fonte de Gibran, mas
presta homenagem também a outro momento literário e religioso humano.
O cenário agora é outro, embora marcadores referenciais
estabeleçam as vinculações necessárias entre as obras. Os doze anos passados pelo profeta em Orphalese agora têm como espelhamento os
doze anos de idade de Jesus Cristo, tão jovem mas já tão sábio. A cidade
se transmuta em Jerusalém. Os interlocutores se apresentam como os
sacerdotes do templo judaico que interrogam o notável adolescente. O
episódio de Jesus no templo aos doze anos é originalmente narrado na
Bíblia (2018), no segundo capítulo do Evangelho de Lucas. Assim, Um dia
em Jerusalém estabelece uma dupla homenagem parodística
hutcheniana a Khalil Gibran e aos evangelhos.
Embora as mudanças espaço-temporais e de personagens, a verve
sapiencial de O profeta e de Um dia em Jerusalém em muito se assemelha.
Após responder a sacerdotes que personificam em alguns momentos os
correspondentes aspectos temáticos dos interlocutores da obra gibraniana,
o Jesus adolescente também faz a sua despedida em termos evocativos
da reencarnação a que Al-Mustafa faz referência:
Disse, então, Jesus aos Sacerdotes e Doutores da Lei:
“Sacerdotes de Jerusalém, tenho que vos deixar, mas
certamente não cessareis de indagar.
A semente está semeada…
Em verdade vos digo: Ainda não chegou a hora de fazer
todas as coisas de meu Pai.
Também sou obediente aos imperativos das Leis
Soberanas que regem vosso mundo.
É preciso que todas as coisas venham ao seu tempo.
Mas vós dareis credibilidade a um jovem?
Digo-vos que não sou este corpo, como vós também não
sois vossos corpos, embora pelos séculos tendes passado
por muitos.
Pertenceis à Eternidade (BRASILEIRO, 1988, p. 91-2).
Em seu clássico Introdução à semanálise, Julia Kristeva (2005, p. 68)
define a intertextualidade como sendo um mosaico de citações em que
“todo texto é absorção e transformação de outro texto.” Ou seja, a
intertextualidade pode ser pensada como um elemento onipresente na
construção literária como um todo. O Jesus adolescente de Emídio
Brasileiro revisita temáticas de Al-Mustafa, num possível diálogo exegético
de profeta para profeta.
Contudo, apesar da coincidência entre temas como o amor e a lei,
Um dia em Jerusalém traz outras temáticas sapienciais que não estão diretamente tratadas em O profeta. É o caso, por exemplo, da caridade,
que numa abordagem etimológica poderia ser categorizada como uma
variação do amor. Sobre a caridade, o trabalho de natureza hutcheniana
de Brasileiro (1988, p. 87) registra: “Em verdade vos digo: quando a
caridade bater a vossa porta, abri-a e deixai que ela habite vossa casa.
Porque ela vos ajudará a suportar vossos dias de inconstância, vossas
lamúrias e desassossegos.”
No contexto do imaginário espírita, autores que já partiram para o
que alguns denominam de país da morte podem e muitas vezes voltam
para produzirem peças literárias que serviriam de evidências da
continuidade da vida após a morte física. Uma das mais impactantes
produções a respeito é o livro Parnaso de além-túmulo, psicografada pelo
médium Chico Xavier (2018) e composta de dezenas de poesias atribuídas
a toda uma gama de poetas luto-brasileiros.
Emídio Silva Falcão Brasileiro é conhecido nome no Brasil tanto no
ambiente acadêmico quanto no movimento espírita nacional (WIKIPEDIA,
2018). Doutor em Direito por universidade portuguesa, o autor é professor
dessa matéria em diversas faculdades goianas, com bibliografia produzida
sobre temas da sua área de formação, bem como de estudos em diversos
outros campos da cultura.
Neste contexto, a pergunta que emerge natural é se Um dia em
Jerusalém poderia ser recebido como uma psicografia em que a alma de
Gibran Khalil Gibran teria retornado pelas mãos do escritor baiano. A esse
respeito, o universo da crítica genética ofereceria instigante episteme para
a pesquisa mediante todo um arcabouço de possibilidades que se abre à
pesquisa dessa peculiar forma de escrita literária.
CONCLUSÃO
A crítica genética é uma das modalidades epistêmicas do universo
dos estudos da ciência literária, ou poética. Nela, estuda-se a gênese de
uma obra a partir do suporte físico de seus manuscritos. É possível, contudo,
passar-se desse suporte a perquirições de subjetividade, com o estudo da
personalidade do médium e do próprio fenômeno mediúnico,
caracterizado pela acoplagem de uma força estranha ao medianeiro que
o induz a comunicações dos mais variados matizes.
A psicografia é o fenômeno mediúnico que dialoga intimamente
com o imaginário literário, pois as almas do outro mundo, ou além, em tese
poderiam voltar e escrever através do sujeito mediúnico. Existe uma massa crítica considerável desse fenômeno no universo cultural humano,
atualmente. Ignorá-la não parece muito sensato. Estudá-la em todos os
seus ângulos possíveis é uma necessidade no âmbito da cultura, pois outro
campo epistêmico dos estudos literários, a estética da recepção, confere
ao fenômeno uma importância que não pode ser menosprezada.
Um dia em Jerusalém representa, portanto, um instigante material
de pesquisa que pode e deve ser levada a efeito em momentos outros dos
estudos da ciência literária, pois representa um riquíssimo material de
reflexão entre a produção e a recepção de uma obra literária forjada a
partir das profundezas da subjetividade humana sob todos os aspectos,
demarcando o locus discursivo de seu autor, cuja representação de insere
no contexto do rizoma e do imaginário espiritista kardequiano.
REFERÊNCIAS
BÍBLIA. Tradução de João Ferreira de Almeida. Disponível em <http://www.
ebooksbrasil.org/adobeebook/biblia.pdf> Acesso em 02 jun. 2018.
BRASILEIRO, Emídio Silva Falcão. Um dia em Jerusalém. Editora Líder:
Goiânia, 1988.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia.
Tradução de Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. Rio de Janeiro: Ed. 34,
1995.
DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. Tradução de
Hélder Godinho. São Paulo: Editoria Martins Fontes, 2012.
GIBRAN, Gibran Khalil. O profeta. Tradução de Mansour Chalita. Rio de
Janeiro: José Fagundes do Amaral e Cia. Ltda, 1980.
HUTCHEON, Linda. Uma teoria da paródia: ensinamentos das formas de arte
do século XX. Tradução de Tereza Louro Pérez. Lisboa: Edições 70, 1985.
KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. Tradução de Guillon Ribeiro. Brasília:
Editora FEB, 1995.
KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. Tradução de Lúcia Helena França
Ferraz. São Paulo: Perspectiva, 2005.
XAVIER, Francisco Cândido. Parnaso de além-túmulo. Disponível em <http://
bvespirita.com/Parnaso%20de%20Alemtumulo%20(psicografia%20Chico%20Xavier%20-
%20espiritos%20diversos).pdf> Acesso em 02 jun. 2018.
WIKIPEDIA. Disponível em
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Em%C3%ADdio_Brasileiro> Acesso em 02 jun.
2018
–
ISSN 2177-3963
ANAIS do IX Congresso Internacional em Ciências da Religião, PUC Goiás, Goiânia, 2018.