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Dores no lugar do “fio”.

(Altair Camargo, médico e membro da Academia Espírita de Letras do Estado de Goiás ocupando a cadeira 13)

Dores no lugar do “fio”.

Durante oito anos trabalhei como médico plantonista no Hospital Santa Luzia na cidade de Anicuns. Apesar desta cidade estar bem próxima de Goiânia (cerca de 90 km), já podem ser notadas diferenças marcantes entre os costumes e comportamento dos moradores das duas cidades e também entre a chamada “Medicina da Capital” e “Medicina do Interior”.

Em nossas observações, notamos que os distúrbios de saúde mais frequentes em adultos de Anicuns são hipertensão arterial, artralgias (“reumatismos”), diabetes mellitus tipo 2, obesidade e suas consequências, hiperlipidemias, hipotireoidismo, fraqueza geral, desnutrição, verminoses, dengue, alcoolismo, tabagismo, epigastralgias, doenças mentais e neurológicas, sequelas de AVC e de infarto, prostatismo, irregularidades menstruais e do climatério, problemas da pele e da circulação, etc. Não necessariamente nesta ordem e frequência.

Tal como acontece em Goiânia, na cidade de Anicuns, as mulheres são mais preocupadas em cuidar melhor da sua saúde e são bem mais obedientes em seguir as instruções dos tratamentos prescritos.

Outro fato que nos chamou a atenção em Anicuns, é ainda o alto grau de analfabetismo e o linguajar típico de quem mora nos arredores daquela cidade, principalmente na localidade de CHOUPANA.

Se receitamos alguma medicação para ser tomada após as refeições, muitos não sabem o que é após e devemos então explicar que é depois do almoço e do jantar.

Se prescrevermos uma medicação para ser tomada às 21 horas, eles nos olham desconfiados e dizem que nos relógios que eles têm, esse horário não existe.. Devemos, então, explicar que 21 horas é o mesmo que às 9 horas da noite.

Nesses oito anos que trabalhamos em Anicuns, inúmeros fatos alegres e tristes (tragicômicos), chamaram muito a nossa atenção e um dos casos mais lembrados é o seguinte:

Ao consultório entraram para serem atendidas uma senhora e uma mocinha com as características típicas da nossa gente humilde e honesta do interior: as roupas muito simples, mas bem limpas; a senhora com as mãos calejadas e envelhecidas, a mocinha muito inibida, com a cabeça baixa, permanecia calada enquanto a mãe tomava a iniciativa da consulta. A mãe então disse que morava no povoado de Choupana, distante, “poucas léguas” de Anicuns e estava muito “aperreada” (nervosa) por chegar atrasada, quem iria consultar era a menina e o principal problema dera era DORES NO LUGAR DO FIO (eu não entendi direito o que era, mas fiquei calado), a mãe já estava mais à vontade e disse também que a fiIha há uns três dias, teve “trelêlê” (desmaio), está muito “descorada” (pálida), “lançando” (vomitando) quase o dia todo, deitada e o “esgotamento” (menstruação) do último mês também não veio. A menina continuava calada e com muito custo ela me disse que tinha 15 anos (a aparência era de 15 anos). Perguntei então, se ela tinha um namorado, ela não respondeu nada e começou a chorar…

Naquela época, eu estava à disposição da OVG (Organização dos Voluntários de Goiás) e um dos locais de trabalho era na OEC (Oficinas Educacionais Comunitárias) do Setor Ferroviário, lá era muito comum  a gravidez em alunas de 15 anos, devido ao perfil da clientela que lá estudava. Entretanto, aquela menina que estava na minha frente, parecia não se encaixar nos critérios de uma possível gravidez precoce (estava eu pensando com os meus botões).

Nisso, a mãe tomou a palavra novamente e garantiu que a filha nunca tivera um namorado, pois ainda não tinha idade para esse tipo de “saliência” e voltou a afirmar que o problema era DORES NO LUGAR DO FIO, então eu pedi a ela que me explicasse direitinho o que era isso. Ela se mostrou muito surpresa por eu não saber o que era, e me mostrou como se estivesse benzendo: Em nome do PAI (colocou a mão na testa), em nome do FIO (colocou a mão na barriga), em nome do ESPIRITO (colocou a mão no ombro esquerdo), SANTO (colocou a mão no ombro direito), AMÉM (colocou a mão na boca). E para me confirmar, disse triunfante que DORES NO LUGAR DO FIO são dores na “boca do estômago”.

A mocinha que estava soluçando, cochichou pra mãe que estava chorando por causa das cólicas que estava sentindo, porque o “esgotamento”, estava chegando naquele momento. Foi um alívio geral, confirmando que ela realmente não estava grávida.

O tratamento então, ficou muito simplificado com a prescrição de vermífugos, antianêmicos, antieméticos e vitaminas, a mocinha teve ótima recuperação de sua saúde. E esta foi mais uma lição que aprendi na Escola da Vida longe da Faculdade.

(Altair Camargo, médico e membro da Academia Espírita de Letras do Estado de Goiás ocupando a cadeira 13)

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